quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Abolicionismo Penal, por Maria Lúcia Karam


"Uma agenda política voltada para o aprofundamento da democracia, para a construção de um mundo melhor, para a construção de sociedades mais iguais, mais justas, mais livres, mais solidárias, onde os direitos fundamentais de todos os indivíduos sejam efetivamente respeitados, há de ter o fim do poder punitivo e a conseqüente abolição do sistema penal como um de seus principais itens.

A luta pela abolição do sistema penal é uma luta pela liberdade; uma luta contra um sistema que estigmatiza, discrimina, produz violência e causa dores; uma luta para pôr fim a desigualdades; uma luta para reafirmar a dignidade inerente a cada um dos seres humanos, assim devendo ser parte inseparável da busca de uma reorganização das sociedades que, superando a violência, as opressões, explorações, desigualdades e misérias provocadas quer pelo capitalismo, quer pelo que se convencionou chamar de socialismo real, possa lançar as bases de um novo patamar de convivência entre as pessoas.

A força ideológica da enganosa publicidade do sistema penal cria a falsa crença que faz com que o controle social, fundado na intervenção do sistema penal, apareça como a única forma de enfrentamento de situações negativas ou condutas conflituosas. Na realidade, porém, as leis penais não protegem nada nem ninguém; não evitam a realização das condutas que por elas criminalizadas são etiquetadas como crimes. Servem apenas para assegurar a atuação do enganoso, violento, danoso e doloroso poder punitivo.

A intervenção do sistema penal, além de provocar danos e dores, é sempre inútil, é sempre tardia, chegando sempre somente depois que o evento indesejável já ocorreu. Essa inútil, tardia, violenta, danosa e dolorosa intervenção do sistema penal deve ser substituída por mecanismos formais e informais de controle (exercido por organismos como a família, a escola, as igrejas, os clubes, as associações, sistemas de saúde e assistência social, leis e aparatos judiciários civis e administrativos) que possam efetivamente regular a vida em comum e evitar ao máximo a produção de situações negativas ou condutas conflituosas no convívio entre as pessoas.

Naturalmente, um convívio mais saudável e menos produtor de conflitos passa pela garantia de respeito e bem-estar para todos os indivíduos. Energias e investimentos desperdiçados com a ilusória e nefasta segurança máxima de prisões devem ser substituídos por energias e investimentos voltados para garantir alimentação saudável, habitação confortável, escolas de boa qualidade, trabalho satisfatoriamente remunerado, lazer, cultura, enfim, dignidade para todas as pessoas.

Os danos e as dores produzidos pelo sistema penal revelam a total falta de racionalidade da idéia de punição. Qual a racionalidade de se retribuir um sofrimento causado pela conduta criminalizada com outro sofrimento provocado pela pena? Se se pretende evitar ou, ao menos reduzir, as condutas negativas, os acontecimentos desagradáveis e causadores de sofrimentos, por que insistir na produção de mais sofrimento com a imposição da pena? O sistema penal não alivia as dores de quem sofre perdas causadas por condutas danosas e violentas, ou mesmo cruéis, praticadas por indivíduos que eventualmente desrespeitam e agridem seus semelhantes. Ao contrário. O sistema penal manipula essas dores para viabilizar e buscar a legitimação do exercício do ainda mais violento, danoso e doloroso poder punitivo. Manipulando o sofrimento de indivíduos atingidos por seus semelhantes, incentiva o sentimento de vingança. Desejos de vingança não trazem paz de espírito. Desejos de vingança acabam sendo autodestrutivos. O sistema penal manipula sofrimentos para perpetuá-los e para criar novos sofrimentos.

O destrutivo sentimento de vingança, manipulado pelo sistema penal, deve ser trocado pelo perdão, pela compaixão, pela compreensão, abrindo espaço, nos conflitos interindividuais, para estilos compensatórios, assistenciais, conciliadores. Os bens e as riquezas produzidos nas sociedades, certamente, devem ser compartilhados. Mas, é preciso também aprender a conviver com os desconfortos nelas gerados e buscar o entendimento, a proximidade com o conflito, as soluções formadas a partir da consideração de todas as nuances do caso concreto e do respeito à dignidade de todos os envolvidos."


Trecho extraído de entrevista concedida ao DAR - Coletivo Desentorpecendo a Razão.