quinta-feira, 29 de setembro de 2011

"O perigo da história única"

Muitas pessoas nos questionam sobre as formas de construir uma sociedade sem prisões aqui e agora, considerando esta ideia uma utopia, uma vez que não temos o poder de derrubar os muros das prisões da noite para o dia.
Foi pensando nisto que decidimos compartilhar este vídeo. Nele, a romancista nigeriana Chimamanda Adichie, através de uma conferência concedida ao TED, conta como descobriu sua voz cultural. Ao fazer isto, ela fala de forma extremamente bela e instigante a respeito de uma das formas mais desumanizantes de aprisionamento que pessoas ou coletividades podem ser submetidas: o aprisionamento em um estereótipo, em um estigma.
É o que ocorre com as pessoas que cometem atos qualificados como criminosos em nossa sociedade: são reduzidas ao crime que lhes foi atribuído e todos os outros aspectos de sua vida são ignorados. Tal ato se transforma na única história desses sujeitos.

Nas palavras de Chimamanda:

"A história única impossibilita nossa identificação como humanos iguais.
(...)
É assim que se cria uma história única: mostra um povo como uma coisa, como uma única coisa, vezes sem conta, e é isso que eles se tornam. 
(...)
Todas as histórias fazem de mim quem eu sou. Mas insistir apenas nestas histórias negativas é planar minha experiência e esquecer tantas outras histórias que me formaram. 
(...)
A história única cria estereótipos. E o problema com os estereótipos não é eles serem mentira, mas eles serem incompletos. Eles fazem uma história tornar-se a única história. 
(...)
A conseqüência da história única é isto: rouba da pessoas sua dignidade. Torna o reconhecimento da nossa humanidade partilhada difícil. Enfatiza o quanto somos diferentes em vez do quanto somos semelhantes."

Julgando estes sujeitos como menos humanos, todos os tipos de punições cruéis e degradantes se tornam aceitáveis. Assim, desconstruir o estigma de criminoso é uma das formas possíveis de produzir liberdades no momento presente.

Nossa página Talentos nas Prisões busca desconstruir um pouco a história única das pessoas encarceradas, trazendo histórias que geralmente não são contadas pelos meios de comunicação de massa e pela mídia sensacionalista que, ao contrário, teimam em demonizá-los. São histórias de pessoas que, mesmo com todas as condições objetivas e materiais fazendo pressão contra, desenvolveram talentos e não deixaram de sonhar com a construção de novos caminhos possíveis.

PARTE 1


PARTE 2



Abolicionismo Penal, por Edson Passeti

“O abolicionismo penal é uma anti-doutrina. Nós, procedentes de práticas políticas diversas, pretendemos abolir a moral do castigo e da recompensa, que começa em nós e acaba nas prisões, nas internações, no controle fechado ou a céu aberto. Lidamos com situações-problemas e não com crimes, com pessoas e não procedimentos, com acasos, tragédias e desassossegos em busca de uma solução anti-autoritária, anti-penalizadora.

O abolicionismo penal libertário, vem do século XIX com as reflexões de Max Stirner expostas com clareza e precisão em seu livro, O único e a sua propriedade, e de um outro precioso estudo sobre os efeitos da punição no final do século XVIII, elaborado por William Godwin, chamado Da justiça política. Como você pode notar, o abolicionismo penal é simultâneo ao discurso punitivo da penalização moderna; não é seu outro lado nem deve ficar reduzido a uma consoladora utopia, mas é um fluxo incessante que problematiza a moral do castigo e propicia liberações. Tomou grande impulso depois de 68, obviamente, e aí entra a marcante contribuição de Louk Hulsman.

Vivemos um presente no qual proliferam os conservadores, independente de sua procedência social; que acreditam na restauração da família monogâmica, na pletora de direitos de minorias confinando os indivíduos em grupos, na caridade e na filantropia, hoje em dia ongueira, no indivíduo como capital humano, na democracia representativa e participativa como realidade e utopia, na verdade das mídias e, principalmente, na punição. Vivemos uma era habitada pelo conservadorismo moderado que combina encarceramentos com controle a céu aberto por meio de práticas e leis que punem mais e com flexibilidades.

Ora, se a prisão é um fracasso, acabem com ela! Mas esses senhores e suas senhoras querem somente reformas e reformas para deixar o sistema inalterado.

Uma análise sobre as prisões na atualidade, numa perspectiva abolicionista, acaba constatando que as prisões se tornaram empresas-estado, cessando o que elas expressavam de vida, as rebeliões e as insurgências. Os prisioneiros e seus familiares e a burocracia e não sei quantos mais estão enredados nesta nova institucionalidade carcerária. Do lado de fora, cresce a crença nos BOPEs e em seus derivados; por dentro aumenta a lucratividade, a repressão, o assujeitamento. Uma sociedade punitiva e capitalista precisa de lucro, corpos disponíveis, gente recrutada nas próprias classes suspeitas para policiar e matar. Há no Brasil hoje em dia o desejo fascista de matar atravessando todos, eu disse todos, segmentos sociais. Mas até quando ela precisará de prisões? Será que essa moralidade que sustenta, ao mesmo tempo, a prisão e o tráfico não está na hora de ser arruinada?

O abolicionismo penal é o isso e aquilo de todos nós que apreciamos a liberdade e o fim das desigualdades sócio-econômicas. Não sou utópico, sou heterotópico. Nós do Nu-Sol queremos acabar com a internação já!” 1

“O abolicionista penal é aquele que começa abolindo o castigo dentro de si. Inventa uma linguagem, um estilo de vida, em que, mesmo não se apartando das utopias, atua no presente de maneira heterotópica. Não deixa para o futuro o que é preciso fazer agora.” 2


1.Trechos extraídos e adaptados de entrevista publicada em: http://www.nu-sol.org
2. Trecho extraído da apresentação do Curso Livre de Abolicionismo Penal.